É significativa a coleção de presentes de Estado à guarda do Museu da Presidência da República.

Percorrendo o espaço da exposição permanente onde parte deles estão expostos, é clara a diversidade que caracteriza este conjunto, distinguindo-se estes objetos pela sua proveniência, tipologia e, inclusive, pelo valor material e artístico.

Além deste lado estético e patrimonial, importa também não esquecer que o presente de Estado deve, sobretudo, ser entendido no contexto cultural, político, social e económico que lhe deu origem.

Só assim se pode perceber, por exemplo, a presença de uma carapaça na exposição, oferecida a Francisco Craveiro Lopes, aquando da sua visita de Estado ao Brasil em 1957.

Nesse ano, entre os dias 4 e 26 de junho, o Presidente português percorreu o Brasil de lés a lés, passando por cidades como o Rio de Janeiro, São Paulo, Santos, Porto Alegre, Brasília, Belém ou Recife.

A 21 de junho, chega a Manaus, onde, entre as várias cerimónias oficiais, a comitiva portuguesa embarca num vapor para um passeio no Rio Negro.

Terá sido durante a passagem pelo maior estado federal do Brasil que Craveiro Lopes recebeu este curioso presente.

Espreitemos, agora, com mais detalhe, a carapaça, que serviu de tela para Branco Silva (1892-1959), pintor e escultor natural do Seringal São João, na Amazónia, filho de um abastado comerciante português de borracha, que cresceu e estudou entre Berna e Lisboa.

Ao centro, as armas nacionais dos Estados Unidos do Brasil, com a data da proclamação da República (15 de novembro de 1889), ladeadas por duas bandeiras nacionais. À sua volta, nos doze escudos da carapaça, homenageia-se o estado do Amazonas.

A cidade de Manaus, capital do estado, está representada pelo seu porto e pelo emblemático edifício do Teatro Amazonas, onde, aliás, decorreu um banquete em honra do Presidente Craveiro Lopes no dia 22 de junho. Para destacar o rico património natural da região, Branco Silva retratou as vitórias-régias, uma das maiores plantas aquáticas do mundo, e o guaraná e a castanha-do-pará, ainda hoje fontes de rendimento para as populações locais.

Outro conjunto de escudos remete-nos para os mitos populares da Amazónia: a «lenda do Uirapuru», uma ave cujo canto inspira muitas histórias indígenas; a «lenda da Buiuna», a cobra negra que vive nas profundezas dos rios e lagos; a «lenda da Yara», a sereia conhecida pela sua grande beleza; e a «lenda das Amazonas», que evoca as Icamiabas, as guerreiras indígenas que se terão cruzado com o explorador e conquistador espanhol Francisco Orellana em 1542.

Por último, Branco Silva ilustrou ainda duas atividades locais: a extração do látex pelos seringueiros, para a produção de borracha, e a caça à tartaruga, cuja carne e ovos fazem parte, historicamente, da cozinha da região.

Dez anos passados sobre a visita de Craveiro Lopes, em 1967, é publicada, no Brasil, a Lei n.º 5197/67 de proteção à fauna, que proibia a caça, o comércio e o abate da fauna selvagem, legislação esta que passou a proteger as tartarugas.

A Amazónia é hoje lar para 18 espécies de tartarugas conhecidas, a maioria em risco de extinção, como é o caso do maior quelónio de água doce da América do Sul, a Tartaruga-da-amazónia, que pode ultrapassar os 90 cm de comprimento e pesar mais de 60 quilos.

O declínio da sua população deve-se não só à destruição do habitat natural, à construção de hidroelétricas ou à mineração (que traz consigo a contaminação por mercúrio), mas, sobretudo, à caça, hoje ilegal, da sua carne e ovos, cujo consumo aumentou, substancialmente, a partir do século XVII, com a chegada dos europeus.

Desde 1957 até ao presente, a conservação e preservação da fauna selvagem ganhou urgência mundial, transpondo-se para convenções internacionais e programas sustentados pelos Estados ou promovidos por organizações não governamentais, mas ainda há longo caminho a percorrer.

A carapaça de tartaruga em exposição no Museu poderá ser, por isso, incompreensível enquanto presente de Estado ao olhar dos nossos dias, mas guarda a memória de uma época em que essa urgência não era, ainda, evidente.

Multimédia

Percorra a galeria carregando nas imagens para ampliá-las e ler as respetivas legendas.

Carapaça de tartaruga, oferecido ao Presidente Craveiro Lopes, aquando da sua visita em Brasil em junho de 1957. Pormenor da carapaça de tartaruga: as armas do Brasil, ladeadas por duas bandeiras nacionais e a assinatura do autor da pintura, Branco Silva. Pormenor da carapaça de tartaruga: o guaraná, por Branco Silva. Pormenor da carapaça de tartaruga: a lenda das Amazonas, por Branco Silva. Pormenor da carapaça de tartaruga: o Teatro Amazonas, por Branco Silva. Reportagem sobre a visita do Presidente Craveiro Lopes a Manaus a 21 e 22 de junho de 1957, publicada na Revista Portugal Ilustrado. Retrato do pintor e escultor Branco Silva. Imagem do número de novembro da rubrica mpr+. Obras de arte expostas no núcleo dos Presentes de Estado.