Em 2004, aquando do estudo e classificação do inventário de prata à guarda do Palácio Nacional de Belém[1], uma pequena marca incisa trouxe nova luz sobre uma peça de ourivesaria que se encontrava, habitualmente, na mediática Sala das Bicas.
Falamos de uma escrivaninha (ou tinteiro), datada de 1744, produzida pelo mais prestigiado ourives europeu da época, Thomas Germain (1673-1748).
Trata-se de um pequeno tesouro, cuja autoria era desconhecida até então: em Portugal, são raras as obras assinadas pelo artífice francês, consequência do terramoto de 1755 e do incêndio que se lhe seguiu.
Thomas Germain era filho de Pierre Germain, também ele um ourives junto da corte de Luís XIV. Foi em Roma, a partir de 1688, que aperfeiçoou a sua educação artística, estudando pintura, arquitetura e escultura. Aí, colaborou com o ourives alemão Friedrich Ludwig (conhecido, em Portugal, por João Frederico Ludovice, que, curiosamente, seria, mais tarde, chamado por D. João V para dirigir os trabalhos iniciais da construção do Convento de Mafra.
Regressado a França, o talento de Thomas Germain acabou por impressionar Luís XV, que lhe concedeu o título de «sculpteur orfèvre du Roi» (escultor e ourives do Rei) e a residência nas galerias do Louvre, em 1723, onde vários artistas patrocinados pelo Rei estabeleciam as suas oficinas.
Thomas Germain recebe, a partir de então, importantes encomendas não só da corte francesa, mas, também, de outras casas reais europeias: Espanha, Nápoles, Dinamarca e, claro, Portugal.
Terá sido o diplomata (e, também ele, um colecionador de arte) D. Luís da Cunha quem «apresentou» o ourives francês a D. João V, em carta de 1724, onde discorria sobre a mestria da sua arte.
Embora não se consiga precisar a data das primeiras encomendas feitas a Thomas Germain, a partir de 1726 os registos demonstram que se tornaram regulares, ao ponto de, durante os 50 anos que se seguiram, e mesmo depois do filho François-Thomas Germain ter herdado a oficina, se terem produzido mais de 3000 peças para a casa real e para a aristocracia portuguesa.
O rol de objetos vindos de Paris é extenso: toucadores, serviços de mesa, coroas, castiçais, escrivaninhas, para mencionar apenas alguns exemplos.
A notícia da morte súbita do ourives francês, em 14 de agosto de 1748, comoveu D. João V, seu fiel cliente, ordenando o monarca que lhe fossem feitas as solenes exéquias, às quais assistiram todos os artistas de Lisboa.
Regressando à escrivaninha, esta, em particular, reúne os seguintes objetos destinados à escrita: tinteiro, areeiro (para polvilhar a areia que tinha a função de mata-borrão) e caixa de obreias (massa de farinha para fechar as cartas). A eles, juntou-se, mais tarde, no início do século XIX, e já sem a assinatura do mestre ourives, uma campainha com as armas do Reino Unido de Portugal e do Brasil e uma bandeja de cobre, mandada fazer para substituir a original, em madeira de ébano ou pau-santo, conforme documentação da época.
A escrivaninha era uma peça comum nas secretárias de quem escrevia com regularidade. Se, no início, era um objeto possuído por poucos, com a progressiva democratização do ato de escrever, acabou por se sobrepor o significado de escrivaninha com o móvel onde se escreve.
Hoje, esta obra de Thomas Germain, que revela a elegância inconfundível do seu estilo − o equilíbrio entre as linhas sinuosas do estilo «rocaille» e a contenção do espírito clássico − pode ser apreciada na exposição permanente do Museu da Presidência da República.
[1] Publicado em: D’Orey, Leonor. «Ourivesaria. Do Palácio de Belém» in Ourivesaria e Porcelana do Palácio de Belém. Lisboa: Museu da Presidência da República, 2005.