Sob um céu estrelado, Maria prepara-se para dar à luz. O seu corpo, que jaz no chão, com os joelhos erguidos na iminência do parto, repousa no colo de um anjo que faz a vez de parteira.

O semblante da Virgem, longe de ser etéreo, transparece dor: «(…) tem um sofrimento imenso pois dói-lhe a barriga, ter uma criança custa muito, era horrível, (…) tão novinha e já nesses trabalhos todos», diria Paula Rego sobre a Natividade que pintou em 2002.

Esta obra integra o conjunto de 8 pequenos quadros a pastel − técnica que, pela ausência de um pincel, permite uma relação mais corpórea com a obra − executados para a capela do Palácio de Belém, após um repto do Presidente Jorge Sampaio: retratar a vida de Nossa Senhora.

Contadora exímia de histórias, Paula Rego aceitou o convite, o qual, confessaria mais tarde em entrevista, a salvou: «A minha mãe tinha acabado de morrer, e eu estava a começar a ter uma depressão. Ele [Jorge Sampaio] veio cá e pediu-me isso. Comecei a fazer com um gosto fantástico».

Tema profundamente enraizado na tradição artística, são raras, no entanto, as perspectivas do ponto de vista feminino. Fazê-lo foi «ambicioso», um «grande risco», mas também uma «honra».

«Ver Nossa Senhora como uma mulher, que é o que ela era», resumiria Paula Rego o propósito que transpôs para estas telas.

Sendo a Bíblia parca em menções à vida de Maria, a pintora foi em busca de inspiração, tal como muitos artistas do Renascimento, na Legenda Áurea, um dos mais populares livros da Idade Média, que colige histórias de 153 santos, e que, pela primeira vez na história do catolicismo, deu voz às mulheres santificadas.

Este não seria o primeiro encontro de Paula Rego com a obra de Tiago de Voragine: em 1990, ela mesma tinha sido o ponto de partida para O Jardim de Crivelli, o mural de 10 metros de largura que a pintora executou para o restaurante da National Gallery em Londres.

Também aí, encontramo-nos com representações inspiradas em figuras femininas da Bíblia como Dalila, Maria Madalena, Judite ou Maria (retratada no episódio da Visitação), revelando-se já a capacidade de Paula Rego em adotar e, ao mesmo tempo, adaptar os cânones da iconografia cristã.

O processo de criação do Ciclo da Vida da Virgem Maria completou-se em poucos meses: «Sentei-me e fiz um caderno de desenhos com os quadros da Nossa Senhora, feitos da minha cabeça (…) Depois, é preciso dar corpo a esses desenhos (…). Tenho de arranjar pessoas para representarem o que ali aparece feito diretamente da minha imaginação».

Em Natividade, as vacas foram rabiscadas a partir de um postal – o burro ficaria reservado para um outro episódio do ciclo, Fuga para o Egito. Elisa, a neta de Paula Rego, assumiu o papel de Maria enquanto jovem. O anjo, que enverga um par de asas alugadas, é Lila Nunes, a sua modelo favorita, que chegou a casa da pintora em 1985 para ajudá-la com o marido, o também pintor Victor Willing, doente com esclerose múltipla, e que, a partir de 1994, começou a posar para Paula Rego de forma regular.

Ambas – neta e assistente – já tinham protagonizado a tela que inaugura este ciclo, Anunciação, episódio que se revelou, palavras da pintora, o mais «trabalhoso» de representar.

Segundo a Legenda Áurea, Maria teria catorze anos, quando, em casa dos pais, em Nazaré, recebeu a visita do anjo. Não foi tanto a sua aparição que a espantou e perturbou, mas as suas palavras, às quais acabaria por responder «Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lucas 1, 38).

«Eu não tencionei dar o medo. Tencionei dar a sensação em que a rapariga se vê, tão jovem e grávida. É uma situação desesperada e difícil, com uma responsabilidade enorme em cima», explicaria Paula Rego.

A jovem idade de Maria revela-se na indumentária escolhida pela pintora – um uniforme colegial – mas também na sua postura, os pés afastados e virados para dentro, que transparece uma certa timidez pueril.

Ao seu lado, um anjo-mensageiro pousa uma mão no ventre e a outra no coração: «O anjo tem de ser de carne e osso, não é? Afinal, apareceu com o corpo de uma pessoa. Usei a Lila, que é uma mulher, mas está aqui bastante masculina; portanto, é um anjo andrógino».

Em 1998, Lila já tinha encarnado um outro anjo, na série que Paula Rego pintou a partir do romance de Eça de Queirós O Crime do Padre Amaro. Ao contrário do anjo no Palácio de Belém, esse não tinha asas, e, segurando uma espada e uma esponja, símbolos da Paixão, inspirava proteção, mas, sobretudo, vingança.

Observemos, por último, a terceira pintura deste Ciclo da Vida da Virgem que encerra o Tempo do Natal: a Adoração.

De um lado, Maria com o Menino ao colo, incidindo sobre eles um feixe de luz; do outro, na penumbra, três pastores em adoração. Um elemento disruptivo «perturba» esta composição mais clássica: «O tapete de tigre – que estava no meu estúdio – tinha-me sido dado. Improvisei tudo mais como um quadro do que como uma ilustração da história».

Numa outra entrevista, a pintora acrescentava mais um ponto, a este conto: «Passa-se na Índia, porque há um tigre. Não são os reis magos, mas os peregrinos. Vão a uma gruta onde aparece Nossa Senhora com o Menino Jesus, um templo de portugueses. (…) É uma história que inventei agora».

Criadas com «admiração e respeito», era desejo de Paula Rego que quem se visse junto as estas pinturas se sentisse em boa companhia, «boa e proveitosa companhia».

Generosamente, a artista ofereceu ao Estado português os oito quadros.

RC

Referências bibliográficas:

  • Anabela Mota Ribeiro, Paula Rego por Paula Rego, Lisboa, Temas e Debates, 2016.
  • Museu da Presidência da República, Paula Rego. Ciclo da Vida da Virgem Maria, Lisboa, MPR, 2006.
  • Museu da Presidência da República, Da Encomenda à Criação. Paula Rego no Palácio de Belém, Lisboa, MPR, 2020.
  • Richard Zimler, Mary's cross: a previously unpublished interview with Paula Rego, 2002, consultado em https://www.zimler.com/pt/contos-e-artigos/wf3x9br9j7cen3swslyrte6xfh2ac4

Multimédia

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«Anunciação», pastel sobre papel, da autoria de Paula Rego. Integra o «Ciclo da Vida da Virgem Maria», exposto na capela do Palácio de Belém. «Anjo I», estudo a carvão para o «Ciclo da Vida da Virgem Maria», da autoria de Paula Rego. «Natividade», pastel sobre papel, da autoria de Paula Rego. Integra o «Ciclo da Vida da Virgem Maria», exposto na capela do Palácio de Belém. «Natividade I», estudo a carvão para o «Ciclo da Vida da Virgem Maria», da autoria de Paula Rego. «Adoração», pastel sobre papel, da autoria de Paula Rego. Integra o «Ciclo da Vida da Virgem Maria», exposto na capela do Palácio de Belém. O «Ciclo da Vida da Virgem Maria» na capela do Palácio de Belém, autoria de Paula Rego. Jorge Sampaio e a pintora Paula Rego na apresentação do retrato oficial do Presidente e do livro dedicado ao «Ciclo da Vida da Virgem Maria». «Anjo», pastel sobre papel, da autoria de Paula Rego. Integra a série inspirada no livro de Eça de Queirós «O Crime do Padre Amaro». Estudos para a obra «O Jardim de Crivelli», da autoria de Paula Rego, numa das salas da residência oficial do primeiro-ministro britânico, em Londres. Propriedade da Coleção de Arte do Governo, o estudo à direita representa o momento da Visitação: Maria visita a sua parente Isabel, futura mãe de São João Batista. Imagem gráfica do número 44 da rubrica mpr+.